escrito por diego cardoso
parte 4
Uma voz
Por Felipe Vieira de Galisteo
Eu não sou muito de falar — Mas se pudesse dizer alguma coisa — Digo que não queria tá aqui — Queria tá em qualquer lugar, menos aqui — Com a cabeça enfiada nessa sujeira toda — Queria que minhas mãos se ocupassem de outra coisa — Limpar? — Limpar eu limpo — Mas falar é outra coisa — Minhas unhas vão cair de tanta cândida — Eu não aguento mais limpar e agora tá tudo tão sujo e eu to tão cansada — Outro dia fui no banco pra resolver problema — Aí fiz cadastro digital porque ficou obrigatório — Tá apagado — Meus dedos tão apagados de tanto esfregar chão que não é meu — E hoje tudo assim — O que é meu nesse mundo é tão pouco e tá assim — Imundo — Sobra o quê da gente numa situação dessas? — Sobra só o trabalho — Eu não sou outra coisa? — Queria não ser útil o tempo inteiro — Sabe? — Queria pintar as unhas de vez em quando — Antes delas caírem — Queria receber massagem — Eu sinto dor nos braços e nas pernas e na cabeça e nas costas — Eu nunca recebi uma massagem — Mas tenho certeza que deve ser bom — Queria ter cheiro de perfume, não de desinfetante — Humilhação — Queria sorrir e mostrar meus dentes, mas não me sobrou nem muito sorriso e nem muito dente — E agora isso! — Não dá tempo de nada — Muito menos de cuidar da gente mesmo — Por isso que não sou muito de falar — Às vezes dá vontade — Mas só de pensar eu quase choro e eu não quero chorar — Então eu fico muda — Se eu falar vai doer ouvir e eu não quero ouvir nada — Olha as minhas mãos — Olha o estado das minhas mãos — Um estado de revolta — Um estado de abandono — Olha pra essa casa — Olha como ficou — Olha a rua — A vizinha debaixo perdeu tudo, até o cachorro — Eu que não perdi muito — Eu não tenho muito o que perder — É só essa sujeira mesmo — Eu tenho que agradecer? — Tudo imundo! — Mas lá onde eu trabalho tá tudo limpo — Tá tudo lindo e cheio de flores e dos meus dedos apagados — Aqui não — Eu to aqui me afogando nessa sujeira — Fim de semana sim e fim de semana também o homem revirando massa pra colocar a casa de pé — E eu aqui dando apoio — Carregando tijolo junto — E agora ver tudo desse jeito — Quanto tempo eu vou demorar pra limpar essa casa? — Quando é que eu vou limpar essa casa se eu to limpando a dos outros? — Eu preferia era tá cega pra não ver essa sujeira — Eu dormiria na lama igual madame quando vai no SPA — Mas eu duvido que aguento o cheiro — Até a lama de gente rica é limpa e cheirosa — A minha não — A minha é fedida — A minha lama tem cheiro de derrota — Quase dois anos construindo — Era uma conquista e agora é só uma dor — Eu preferia não ter mão e nem braço pra não ter carregado nenhum tijolo e nunca mais pegar num cabo de vassoura — Eu queria não ter mão e nem braço e nem perna pra não ter que caminhar quase uma hora todo dia pro trabalho só pra economizar o dinheiro do ônibus pra construir minha casa que agora tá imunda — Aí eu podia ficar aqui toda molhada de lama igual uma madame — Minha casa tava tão bonita — Faltava só pintar — E agora eu preciso limpar tudo — Dá um gosto ruim na boca — Sabe? — Como se eu tivesse comido uma raiz amarga — Como se eu tivesse bebido veneno — Ninguém pode me dizer que isso vai passar — Eu sou uma ferida aberta que não cicatriza — Eu tenho bem menos tempo do que já tive pra viver e até agora não passou — Todo o pouco de bom que aparece é fruto pequeno dos calos nas mãos — Nem doce fica — Só fica menos pior — Depois da tempestade não vem a bonança não — Vem a enchente — Depois da enchente vem o desabamento do morro — Se você não morre afogado eles te soterram vivo — É lama e lama e lama e mais lama! — O cheiro de podre nas ruas — Os bichos se debatendo no último respiro — As crianças chorando — Os corpos sujos — A gente escorrendo pelo esgoto — Devorados pela água suja e por essa terra fedida do inferno — Depois — Quando passa a chuva — O barro fica impregnado — Os pés da gente atolados — Olha — Eu não sou muito de falar — Mas tudo seca! — E depois que tudo ficar seco — Eles continuam caçando os sobreviventes — Eu não queria tá com medo — Aqui todo mundo tem medo — Mesmo dentro de casa — E quando todo mundo tá dentro de casa — Seco, sujo, com medo — Em vez de sair pra rua pra gritar — Não — Fica quieto igual eu — A gente quieto — Pode anotar — É fogo! — Eles tacam fogo — Em tudo — Que é pra não sobrar nada — Ninguém — E quando não sobrar nada nem ninguém — Quando até o banco vai esquecer da gente porque a gente não vai ter nada — Nem dívida! — Quando a gente estiver apagado igual meus dedos — Aí eles vão encher de prédio que a gente entra pela porta dos fundos — E a gente vai limpar o lixo deles enquanto eles passeiam de iate com seus cachorros — Pode anotar — Aí vai vir o luxo — Porque o lixo foi posto fora — Eu não sou muito de falar — Mas eu rezo pra cair um avião em cima desses prédios tudo — Igual das Torres Gêmeas — Sabe? — Eles gostam tanto de americano — Não é? Eu queria que caísse um avião bem na cabeça da madame cheia de lama perfumada na cara — Não — Eu não devia plantar esperança — Talvez tudo isso seja Deus me dizendo que não mereço ter uma casa limpa — Não — Eu não sou muito de falar — Mas eu juro que eu queria gritar — E da minha boca só sai uma canção de chorar que ninguém escuta.
Cansaço sistêmico
Por Mileny Vitória
(Tudo desligado)
A respiração sincroniza com o peito cansado
(Olho estagnado)
O relógio avançando a passos largos
Vivendo de segunda a sexta esperando a chegada do sábado
Vivendo do dia 1 ao 30 esperando a chegada de um salário mal pago
Dormir pouco
Acordar cansado
(Se veste, escova o dente, toma café no caminho do trabalho)
Perder a hora
Chegar atrasado
O trânsito parado
O transporte lotado
O celular mostrando vídeos em sequência um atrás do outro
que nem fazem mais sentido
Um trago
Um só sentido (pra frente)
Um caminho
Ter tantas pessoas a sua volta e mesmo assim se sentir completamente….
….sozinho
Emoções congeladas como se estivessem em suspensão
alegria
medo
tristeza
raiva
ansiedade
Tudo em modo avião
Um segundo de felicidade
pra uma vida inteira em exaustão?
Existir durante o processo esperando a chegada da conclusão
Existir durante o dia que deveria ser útil
Esperando a folga
Existir em 5h de trajeto de um lugar pro outro
Esse tempo não volta
Esperando a chegada de uma vida que deveria estar sendo vivida agora
Não saio, não dou risada
Não vejo meus amigos a anos
Não tenho tempo pra nada
Evito o sentimento de amar
Por causa do medo de ser amada
E não ter tempo de administrar os danos
De ter tomado uma decisão errada
Não falo sobre o que eu sinto
Minha família fica de lado
A não ser quando uma doença entra em cena
Sentir não deveria ser um problema
Viver não deveria ser um dilema
Sobreviver não deveria ser um privilégio
Mas uma condição de estar vivo…
Que pena!
Alguém assume o controle e restabelece a conexão
Alguém por favor assume o controle
Me faz me sentir viva
Me tira do modo avião
Alguém assume o controle e restabelece a conexão
Alguém por favor assume o controle
Me faz me sentir viva
Me tira do modo avião
Quem é você?
Quem é você?
Eu durmo no vagão se eu consigo um lugar pra sentar eu durmo no vagão mesmo sem ter um lugar pra sentar
a rotina me grita "levanta!"
mas tem cansaço do lado de cá
eu só tô querendo descansar, saca?
acordando as 5 pra pegar o ônibus das 6.
aceitando 4,40 numa passagem que a gente já pagou 3.
levando esporro do chefe por causa do trabalho que outro não fez
esperando a hora do almoço, vendo o povo viajando em dia de expediente e me perguntando
"quando vai ser minha vez?"
Anos divididos em barulhos da máquina de ponto
mesmo eu sabendo que aquele não era o meu lugar
eu sou mulher e sou preta
e com isso é subentendido que se me derem o mundo nas costas eu vou ter que aguentar
mesmo que eu esteja trabalhando pra pagar
o intercâmbio da filha de quem me empregava
Andando na corda bamba dos problemas que não pedi pra serem meus
estando em todos os lugares o tempo todo
fazendo de tudo um pouco
onisciente e onipresente pode me chamar de Deus
Como se vence uma corrida que já se inicia cansado?
não tô a fim de competir com quem nasceu recebendo salário
não quero ouvir falar sobre a grandiosa meritocracia
que só reconhece quem mata a sua própria essência
pra receber aplausos e caridade cheia de pena da burguesia
Cansa disputar com quem já nasce com o bolso cheio
com quem nunca ficou amarrotado
dentro de um vagão lotado
e teve que se segurar em outra pessoa pra não cair quando o maquinista aperta o freio
quem nunca gritou um “VAI DESCER!” porque dormiu e passou do ponto
com quem nunca catracou porque não tinha a porra dos 5 conto
Minha vontade é de quebrar o sistema
Recomeçar, quebrar tudo e fazer a revolução!
O texto dentro deste bloco manterá o seu espaçamento original quando publicado.
Alguém assume o controle e restabelece a conexão
O texto dentro deste bloco manterá o seu espaçamento original quando publicado.
Alguém por favor assume o controle
O texto dentro deste bloco manterá o seu espaçamento original quando publicado.
Me faz me sentir viva
O texto dentro deste bloco manterá o seu espaçamento original quando publicado.
Me tira do modo avião
Mas a gente dorme no ponto, a gente dorme dentro do vagão
(Tudo desligado)
existindo de segunda a sexta
esperando o final de semana chegar
(Olho estagnado)
eu também tô cansada
e lutando pra conquistar o que é meu, não posso ser hipócrita e te dizer que vou parar
(Quem sou eu?)
O que me cansa é saber que tem gente morrendo pra herdeiro viajar
passando fome pra fazendeiro lucrar
Enquanto tem gente chorando
porque não tem mais dinheiro pra conta pagar
eu posso até estar cansada
Mas ainda tenho voz suficiente pra gritar
Que se um dia esse sistema tiver a um passo de cair
Eu faço questão de ser a primeira a empurrar
O texto dentro deste bloco manterá o seu espaçamento original quando publicado.
Eu faço questão de ser a primeira a empurrar.