escrito por diego cardoso
parte 3
A Filha
ela se aproxima — se senta
ela veste uma calça larga e macia — uma camiseta folgada e bastante confortável — ela gosta de vestir roupas assim — talvez ela esteja de cabelos soltos — e os prenda depois — talvez ela esteja de cabelos presos — e os solte depois — ela gosta de ambos os jeitos — antes de começar ela tira os sapatos e os ajeita ao lado
eu prefiro fazer isso descalça — estes sapatos apertam os meus pés — e eu gosto de me sentir confortável — sempre fui acostumada a ficar descalça — desde criança eu gosto de sentir os pés tocando o chão — lá em casa — não dava pra ter um sapato novo sempre — minha proibia a gente de gastar os sapatos — era chinelo ou nada — por isso eu vivia pra cima e pra baixo descalça — essa foi a melhor parte da minha infância — quando eu morava aqui nessa rua — agora está tudo diferente — mas eu ainda me lembro exatamente como era antes — a nossa casa ficava ali — onde está aquele prédio — da casa eu também me lembro de cada detalhe
quando meus pais se mudaram pra cá eu ainda era bem pequena — minha mãe estava grávida — faltava pouco para o meu irmão nascer — a família ia aumentar e meus pais acharam que seria melhor uma casa maior — a casa era antiga — não era perfeita — um dia quem sabe rolaria uma reforma — mesmo assim era a casa que era nossa — o lugar escolhido para nossa família — todas as minhas melhores memórias nasceram aqui — mas as coisas quase não foram assim
alguns anos depois meus pais decidiram se divorciar — a casa ainda estava sendo paga — eu não me lembro muito bem dessa época — as histórias que eu sei foi minha mãe quem contou — meu pai queria vender a casa e dividir o dinheiro — mas minha mãe queria continuar morando lá — ela achava que era melhor pra gente — isso virou um impasse — ou ela comprava a parte do meu pai e terminava de quitar a casa sozinha — ou a casa seria vendida e a gente teria que ir pra outro lugar — o meu irmão ainda era bebê — minha mãe não trabalhava — e meu pai estava inflexível
até que um dia — no meio de todo esse imbróglio — aconteceu uma coisa que mudou tudo — meu pai sofreu um acidente de carro voltando do trabalho em outra cidade — ele perdeu o controle da direção quando tentou desviar de um cavalo na estrada — e morreu — em vez do divórcio — minha mãe ficou viúva — com dois filhos pequenos e uma casa pra pagar — uma tragédia — mas o meu pai tinha seguro — minha mãe recebeu o dinheiro — terminou de quitar a casa — e nós continuamos morando aqui
ela leva as mãos à cabeça — cruza os dedos nos cabelos — começa a massagear a parte de trás
às vezes a minha cabeça dói — do nada sinto uma pontada — e já sei que tem uma dor chegando — minha mãe me ensinou que apertar os occipitais — ajuda a aliviar — a dor passa feito mágica
ela termina a massagem e repousa as mãos sobre as pernas
nós moramos naquela casa por alguns anos — eu passava a maior parte do tempo nessa rua — andando de bicicleta — brincando com as outras crianças — indo pra cima e pra baixo com meu irmão pra comprar doce — a maioria dos meus amigos eram do bairro — nos víamos de manhã na escola — e passávamos o resto do dia nessa rua — ficávamos juntos o dia inteiro — não cansávamos da cara um do outro — hoje eu fico pensando — como é que a gente conseguia — criança é mesmo incrível — mas depois de um tempo — a rua foi ficando diferente — as pessoas passaram a sair menos — os adultos não deixavam mais as crianças ficarem fora de casa — os muros subiram — placas de vende-se começaram a aparecer nas casas — a maioria dos meus amigos se mudou daqui — minha mãe dizia que nunca iria se mudar — mas a nossa situação estava difícil — ser uma mãe sozinha com dois filhos crescendo tinha seus custos — um dia uma construtora fez uma oferta para comprar a nossa casa — e minha mãe aceitou — ela decidiu que iríamos embora para o interior — para uma cidade pequena — bem longe — onde minhas tias moravam — e o custo de vida era menor — eu devia ter uns doze anos
mesmo morando longe — eu pensava sempre na nossa casa — eu ficava imaginando que havia outras pessoas morando lá — talvez uma família igual a minha — mas com pessoas diferentes — e ficava inventando histórias para cada uma delas — na minha cabeça a casa ainda existia como nós a tínhamos deixado — um dia eu disse pra minha mãe que queria voltar aqui pra ver como a casa estava — queria saber se tudo continuava igual ao que eu imaginava — foi quando ela me contou que a casa não existia mais — ela tinha sido demolida — e no lugar tinham construído um prédio — como assim demolida — quem construiu — por que você deixou isso acontecer
eu me lembro como se fosse hoje — senti como se tivessem cometido a maior traição do mundo contra mim — quis saber da minha mãe como ela tinha sido capaz de permitir aquilo — por que ela tinha deixado que destruíssem a nossa casa — ela jurava que tinha me contado — e eu jurava que não sabia — naquele dia eu fui dormir chorando — exatamente como no dia em que ela aceitou vender a casa — não sei muito bem o que passava pela minha cabeça — acho que eu esperava voltar um dia e encontrar a casa no mesmo lugar — me esperando — sei lá — coisa de criança — mesmo sabendo que a nossa casa não estava mais lá — eu continuava pensando nela — pensava nisso todos os dias — era impossível imaginar que agora havia um prédio no lugar — ela ainda existia sim — na minha cabeça — como se estivesse guardada — minha mãe dizia para eu parar de pensar naquilo — que um dia eu não ia mais nem lembrar — e esse virou meu maior medo
como dá para ver — não existem mais casas aqui — no lugar das que existiam foram construídos edifícios altos — prédios repletos de apartamentos pequenos — espaços minúsculos que servem para as construtoras aproveitarem o máximo de espaço — fazendo caber mais e mais apartamentos — para pessoas que não terão escolha a não ser morar num lugar apertado — e caro
ela solta os cabelos se estiver de cabelos soltos — inspira profundamente e ergue os braços acima da cabeça — expira e deixa os braços caírem ao longo do corpo — ela alonga o pescoço fazendo movimentos com a cabeça — não arruma os cabelos que ficam sobre seu rosto
no interior a gente podia ficar fora de casa até tarde — as noites eram quentes — minha mãe e minhas tias colocavam as cadeiras na calçada e ficavam conversando na frente de casa — enquanto nós brincávamos na rua — todo mundo morava perto — todo mundo se conhecia — sem nem mesmo ser da família — não foi difícil gostar de morar lá — quando eu já era maior — minha época favorita era quando tinha quermesse — a cidade inteira participava — tinha show parque de diversão comida sorteios — uma vez meu irmão até ganhou uma bicicleta
teve um ano em que anunciaram um concurso de dança — o prêmio pro primeiro lugar era duzentos reais — e eu quis participar — eu nunca tinha dançado em público antes — mas fui mesmo assim — no dia — várias meninas subiram no palco — e tiveram que dançar na frente do público — que depois ia escolher a melhor de todas — tocaram country axé e samba — e eu dancei tudo — não senti vergonha como achei que seria — no fim eu não ganhei — fiquei em terceiro lugar — mas não fiquei triste — lembro de ter me divertido — lembro da minha família torcendo por mim — lembro das pessoas gritando e aplaudindo enquanto eu dançava — meu prêmio foi uma nota de cinquenta reais — aquilo tudo me deixou tão feliz
quando eu desci do palco pra encontrar minha família — um homem que eu não conhecia se aproximou de mim e me agarrou pela cintura — disse que queria me dar parabéns — aquilo me deixou assustada — eu me soltei e só queria ir pra casa — me tranquei no quarto e não quis falar com ninguém — na hora eu achei que aquilo tinha sido culpa minha — me senti péssima — todo mundo achou que eu tava triste porque não tinha ganhado o concurso — depois daquele dia — eu não quis mais continuar morando no interior
ela segura o quadril direito com a mão direita — deixando o cotovelo afastado — passa o braço esquerdo à frente do corpo — encostado no abdômen — colocando a mão esquerda sobre a mão direita — o espaço entre seu lado direito e seu cotovelo direito se preenche com a cor vermelha — ela empurra o quadril direito com as mãos
o meu irmão está vindo — ele deve chegar a qualquer momento — nós combinamos de nos encontrar aqui — não imagino qual vai ser a reação dele quando vir tudo tão mudado — quando eu registrei essa imagem pela primeira vez — da rua com os prédios altos sem as casas antigas — foi como se algo novo fosse escrito à força por cima do que havia antes — ali eu senti que aquela fotografia que eu tinha nítida na minha memória começou a mudar — a minha mãe tinha razão — a gente cresce e deixa de pensar em certas coisas — algumas esquecemos — desaparecem na rasura como quando apertamos bem o lápis contra o papel — e outras se transformam — dão lugar a novas — a gente querendo ou não — eu sei que não vou conseguir guardar a imagem da casa para sempre — eu sei disso — se fecho os olhos ainda consigo enxergar nitidamente — a frente da casa — o portão de alumínio — o pequeno jardim na entrada — a janela da sala — a árvore na calçada — a lixeira ao lado da árvore — a caixa de correio — um dia vou pintar essa imagem — quando estiver dominando bem o pincel e as tintas — quando tiver melhorado meus traços — ainda estou pegando o jeito — faz pouco tempo que comecei a desenhar — isso era algo que eu sempre quis aprender — pintar e dançar — depois daquele dia — eu pensei que nunca mais dançaria de novo — mas isso também mudou — foi uma das primeiras coisas que eu fiz quando voltei — eu queria que minha mãe tivesse me visto dançar outra vez
ela abaixa a cabeça — joga os cabelos para frente — massageia os occipitais novamente — fica assim por um tempo — depois ela reergue a cabeça e o tronco — ela não arruma os cabelos que ficam sobre o seu rosto
o segredo é apertar bem nos occipitais — esses são os occipitais — esses aqui — se colocar a mão bem assim em cima da nuca dá pra sentir
ela continua apertando os occipitais repetidamente — ela segura a cabeça dos dois lados com as mãos e dedos bem abertos sobre o crânio — entrelaçados nos cabelos — com os dedões posicionados sobre os occipitais massageia com movimentos circulares — fica assim um bom tempo — ela reergue a cabeça jogando os cabelos para trás
o osso occipital é toda a parte de trás da cabeça — mas se você coloca a mão sobre a testa e desliza para cima até sentir uma parte mais larga e plana — é nessa área plana que se encontra o osso parietal — e se você deslizar a mão para a esquerda e para a direita — mantendo na mesma altura — vai sentir que o osso parietal está em ambos os lados da cabeça — cobrindo tudo — ele é como se fosse o teto da sua cabeça — existem dois ossos parietais — um de cada lado — que se unem no meio da parte superior
ela coloca a mão sobre a testa e desliza para cima — desliza a mão para a esquerda e de volta para a direita — fazendo movimento de vai e vem — sobe as duas mãos sobre a cabeça — ela estaciona a mão direita no alto da cabeça — ela desliza a mão direita sobre a testa — cobrindo as sobrancelhas — o rosto dela — e a cabeça — indica encostando com o dedo cada um dos ossos que cita
se você deslizar sua mão para a testa — tocar nela bem no meio — vai sentir um osso um pouco arredondado — esse é o osso frontal — logo acima dos olhos — é uma proteção para a parte da frente da cabeça — no nariz — esse é o osso nasal — quase dentro do olho — tem o osso lacrimal mais abaixo — nas maçãs do rosto — esse é osso zigomático — na base do rosto — na altura do queixo — em cada lado — as mandíbulas
onde hoje tem aquela farmácia — antes ficava a casa do seu Nilo — ele era o benzedeiro do bairro — a casa dele era um barraco pequenininho — moravam ele e a mulher — os dois muito idosos — as pessoas iam lá quando estavam se sentindo mal — e ele as benzia e as curava — foi ele quem ensinou para minha mãe como curar a enxaqueca — sempre que a gente ia lá — ele dava bala de banana pra gente — eu tinha um pouco de medo dele — achava que ele era mau porque era pobre — mas minha mãe me explicou que a gente era pobre também — e que uma coisa não tinha nada a ver com a outra — na casa dele também tinha plantas de todo tipo pra fazer chá — era só pedir que ele dava — queria saber o que aconteceu com o seu Nilo — e com as outras pessoas do bairro — para onde será que elas foram — onde elas estão morando agora — será que quando fecham os olhos elas ainda enxergam as suas casas
há alguns dias ouvi a história de um bairro inteiro que desapareceu — o chão do lugar começou a ceder — colocando em risco todas as residências — os moradores tiveram que abandonar as casas — foram embora do lugar onde sempre viveram — o bairro se tornou uma vizinhança fantasma — as casas continuam lá — mas está tudo vazio — virou um lugar para lembrar que o que tinha existido ali antes não existia mais — tudo porque uma empresa estava extraindo minério debaixo da terra — os moradores tentaram avisar o que estava acontecendo — se organizaram para salvar o lar deles — mas ninguém fez nada — a briga por uma solução demorou anos — enquanto isso o chão foi afundando — e nada — muitos morreram esperando resolver — os que saíram tiveram que ir para áreas mais distantes — mais caras — cheias de problemas piores — muitos deles ficaram doentes — entraram em depressão — porque foram obrigados a deixar suas casas — desde que ouvi sobre essa história fico pensando nessas pessoas — devemos er tantas — e tão diferentes — como elas estão — como vivem agora — sentindo uma falta profunda
ela se levanta — prende o cabelo se estiver de cabelo solto — começa a dar batidas pelas partes do corpo — é um aquecimento — faz isso nos braços pernas tronco cabeça e pescoço e rosto
às vezes eu sinto uma falta também e não sei o que fazer — o que será que elas fazem para preencher essa falta — tenho vontade de voltar no tempo — para quando as coisas eram como antes — ou então que ele passe depressa — como eu queria quando era criança — mas nada disso é possível — eu tento preencher esse vazio de diferentes maneiras — um desenho uma música uma dança — quando estou na minha casa — e me sento na varanda pra observar a paisagem — é quando sinto essa falta mais profunda — eu sei que quando meu irmão chegar — vai ajudar a aliviar um pouco
ela olha para frente — encara o vazio — como se observasse uma paisagem à frente — depois de um tempo assim — estica o braço e faz um movimento com a mão — o movimento deixa um rastro de cor azul no alto — ela observa a cor à sua frente — como se fosse um avião ao longe atravessando a paisagem
antes de começar — sinto sempre um frio na barriga — é como se eu não quisesse estar aqui — mas eu quero — acho que nunca vou me acostumar — já vou começar — estou prestes a começar
ela começa uma partitura com o corpo — talvez ela faça movimentos cotidianos e fluidos — talvez suas mãos deixem rastros inacabados — talvez os espaços entre seus membros e as superfícies do corpo se preencham com alguma cor — ela coloca o corpo para trabalhar — repete movimentos — improvisa passos — vai ficando mais intenso — deve ser uma dança bonita