escrito por diego cardoso
parte 2
narradora
a história de hoje é a história da Aline — e eu preciso avisar que essa história tem partes bem difíceis — que podem despertar alguns gatilhos — por isso tenham em mente que não é como a maioria das histórias que são contadas aqui — é uma história pesada — até um pouco trágica — e a Aline sabe disso — ela refletiu muito antes de decidir se enviaria ou não essa história
já faz alguns anos que tudo aconteceu — e durante algum tempo foi bastante difícil pra Aline contar sobre tudo o que ela passou — se agora ela tomou essa decisão é porque se sente segura pra fazer isso — porque confia aqui nesse nosso espaço — ela faz questão de dizer que se sente parte da comunidade que criamos
a Aline não se chama Aline — esse é um nome fictício — como em todas as outras
histórias contadas aqui não serão usados os nomes reais das personagens — de resto é tudo real
a Aline tem uma vida boa — ela trabalha fazendo o que gosta — mora num apartamento legal — leva uma vida confortável — tem um cachorro — não tem filhos e não sabe se vai ter um dia — ela se sente num momento positivo da vida — eu estou contando isso porque a Aline acha importante dizer que a vida que ela leva hoje é muito diferente de tudo que ela viveu antes
houve um tempo em que a vida da Aline era muito difícil — na época a Aline morava com os pais e o irmão mais novo — e muita coisa estava acontecendo na vida dela e da família — a Aline era a única pessoa trabalhando e o sustento da casa praticamente dependia dela — o pai dela — o Roberto — tinha ficado sem poder trabalhar por conta de um acidente — quando isso aconteceu — de uma hora pra outra — todas as responsabilidades caíram sobre as costas da Aline — pagar as contas — fazer mercado — pagar o aluguel — mas o salário que a Aline recebia mal dava pra ela — pra piorar a casa em que eles moravam ficava numa área de risco de enchentes — era cheia de problemas — a Aline conta que toda vez que chovia era uma apreensão que ela não gosta nem de lembrar — as coisas pra família da Aline nunca tinham sido muito fáceis — a família dela sempre teve problema com dinheiro — o pai da Aline e a mãe dela — a Nice — nunca foram do tipo que sabiam poupar — que tinham umas economias guardadas — então — quando rolou toda aquela situação — obviamente que ninguém estava preparado para uma emergência
além dessa situação em casa — a Aline tinha um emprego que ela odiava — além de ganhar mal — ela era explorada — e se sentia constantemente diminuída — o que a Aline ganhava era basicamente pra cobrir as despesas da casa — mal dava para pagar as necessidades básicas dela — o cartão de crédito estava sempre estourado — com as faturas atrasadas — uma bola de neve — eu sinto um frio na espinha só de pensar numa situação dessas — ela estava sempre fazendo hora extra para complementar o salário no fim do mês — a Aline vivia esgotada — num estado de tristeza permanente — uma tristeza profunda — sem ânimo — sem disposição — sem esperança — ela não sabia mais o que era ter sonhos — fazer planos — tudo isso foi ficando pelo caminho — enfim acho que deu pra entender né — é de tudo isso que ela fala quando diz que foi um momento péssimo — ela se lembra de vários momentos dessa época em que ela sentia uma vontade de sumir — ou então ser outra pessoa — qualquer uma que não fosse ela — era uma vida muito diferente da vida que tinha imaginado que teria
não tinha como ficar pior — ela pensava
foi assim durante uns meses — até que a mãe e o irmão da Aline conseguiram trabalho — a Nice encontrou uma casa pra trabalhar fazendo faxina — e o Felipe foi trabalhar como entregador — com mais pessoas trabalhando em casa — a situação tinha tudo pra mudar — ou pelo menos aliviar um pouco — sem precisar pagar todas as contas de casa — a Aline conseguiu até parcelar um tênis que ela queria — uns meses depois — quando parecia que as coisas iam melhorar mesmo — a família da Aline sofreu um choque — foi num dia em que ela estava em casa com os pais — era feriado — o Felipe estava trabalhando — ele nunca tirava folga — de repente eles ouviram buzinas do lado de fora — primeiro eles acharam que não era nada — que talvez fosse entrega pra algum vizinho — depois perceberam que era no portão de casa – e que não era uma moto só — quando a Aline saiu pra ver — eram dois motoqueiros que conheciam o Felipe — eles tinham ido até lá pra avisar que o Felipe estava no hospital — ele tinha sido baleado depois de se envolver numa discussão de trânsito com um motorista que estava armado
de tudo que eles disseram a Aline só lembra disso e o nome do hospital — ela não prestou atenção em mais nada porque só conseguia pensar em como as coisas iam ser se algo acontecesse com o irmão dela — de onde a família ia tirar dinheiro pra lidar com outra emergência — como ela ia contar aquilo pros pais quando entrasse em casa — quanto daria pra conseguir se vendessem a moto do Felipe — passou de tudo pela cabeça da Aline naqueles segundos que ela foi do portão até dentro de casa pensando na reação do Roberto e da Nice — só de lembrar a Aline ainda sente o mau estar que ela sentiu naquela hora — imagina o que é contar pros seus pais que o seu irmão está no hospital porque foi baleado — a Aline conta que — ela não sabe como conseguiu isso — mas conseguiu manter a calma e dar a notícia de um jeito que os pais dela não se desesperassem — no caminho pro hospital ela foi o tempo todo tentando acalmar os dois — mas no fundo ela mesma não estava calma — ela estava desesperada — sabe quando você evita pensar numa coisa — mas aquilo é tudo em que você consegue pensar — quando chegaram no hospital — souberam que o Felipe chegou com vida — mas não resistiu
a Aline e o Felipe não estavam se falando quando ele morreu — dias antes os dois discutiram quando o Felipe pediu dinheiro emprestado — e a Aline negou — ele queria comprar um celular novo para fazer as entregas — mas ela disse não — diferente do restante da família a Aline era a única que guardava algum dinheiro — o mínimo que fosse — ela economizava porque queria realizar um desejo — viajar de avião — sonho é sonho né — pode parecer algo bobo — idiota — mas pra Aline havia uma razão muito especial para querer aquilo — alcançar aquele objetivo significava bem mais do que apenas viajar de avião pela primeira vez — e faltava pouco para ela conseguir o valor
o Felipe era a única pessoa que sabia que a Aline economizava — ele só não sabia o motivo — a discussão começou quando ele insistiu pra saber o que era tão importante assim pra ela não querer ajudá-lo — a Aline se recusou a contar — afinal — vamos combinar — era um direito dela — mas o Felipe não se conformou — ele foi grosso com ela e os dois começaram a bater boca — a Aline também não foi muito gentil — ela reconhece isso — daí o bate boca virou briga — a briga virou dedo na cara — insultos — decepção — aquelas coisas — terminou com os pais se metendo e a Aline e o Felipe sem se falarem —
uma coisa que a Aline não pode deixar de contar — é que a família dela sempre foi uma família que se amava muito — às vezes rolava um desentendimento ou outro — principalmente entre ela e o Felipe — de ficarem sem se falar uns dias — mas depois tudo voltava ao normal — mas na briga daquele dia a Aline sentiu que alguma coisa tinha se quebrado entre os dois — hoje a Aline entende que ela e o irmão só estavam cansados — e com raiva — entalados de muita coisa — nos dias seguintes eles não trocaram nenhuma palavra — nem se olhavam mais — mesmo assim a Aline achava que uma hora as coisas iam se resolver entre eles — de algum jeito — e tudo ficaria bem de novo — mas não deu tempo
o Roberto e a Nice ficaram arrasados — não é pra menos — perder o filho mais novo — de uma hora pra outra — e de uma forma tão violenta — a Aline conta que ver a tristeza dos dois — que nunca se abatiam — mesmo com as dificuldades — só piorou a dor dela — a mãe da Aline ficou muito abalada — mas quem ficou pior foi o pai dela — desde o acidente que tinha sofrido o Roberto já não andava muito animado — mas a morte do Felipe foi um golpe muito duro pra ele — sabe quando uma pessoa perde a vontade de viver — de fazer as coisas que gostava — coisas simples — a Aline contou que o Roberto foi ficando assim — até cair numa depressão profunda — ele passava o dia de cama — não se alimentava direito — não saía mais de casa pra nada — ele foi ficando fraco — a saúde foi piorando — a Nice precisou reduzir a quantidade de faxinas pra poder ficar mais tempo em casa com ele — a Aline também queria poder ajudar — mas ela não sabia o que fazer — era como se não se sentisse capaz — como se não conseguisse — teve um dia — a Aline lembra perfeitamente — a mãe dela estava sentada na cozinha em silêncio — o pai na sala deitado no sofá com a tv ligada — a Aline olhando o rosto da Nice — até que sentiu uma vontade muito grande de dizer que tudo ia ficar bem — mas isso não era nem de longe o que ela sentia de verdade — então ela preferiu não dizer nada — ela não acreditava que as coisas iam ficar bem — ela se sentia como antes — só que pior
a situação do pai da Aline piorou quando ele pegou uma gripe e precisou ser internado — ele tinha se recusado a tomar a vacina e quando foi para o hospital já estava bastante debilitado — foi tudo muito rápido — um dia ele estava bem — depois começou a ter os primeiros sintomas — e quando deram entrada no pronto socorro descobriram que o estado dele já estava delicado — um dia depois — o quadro do Roberto piorou — ele foi levado para a UTI e precisou ser entubado — três dias depois ele faleceu — foi pra Aline que ligaram para avisar — e ela teve que contar pra mãe dela
primeiro o irmão — pouco tempo depois — o pai — como se fossem duas partes de uma tragédia só — uma sendo continuação da outra — a Aline enxerga assim — mal havia tido tempo de sentir aliviar uma dor e já veio outra no mesmo lugar — e ela teve que ter forças de novo — pra equilibrar a dor dela e amparar a dor da mãe — ao mesmo tempo pensando nos gastos — e nas dívidas — que teriam que fazer por conta de mais uma morte
a Aline conta que tudo que aconteceu fez ela e a mãe se aproximarem ainda mais — elas se deram muita força pra superar aquela fase e desabafavam muito uma com a outra — foi isso que ajudou a diluir aquela dor que elas sentiam — a Nice sempre falava que as coisas aconteciam porque era a vontade de Deus — ela sempre tinha otimismo de que as coisas iam melhorar — a Aline não conseguia pensar igual a mãe dela — mas ela nunca discordava — ela sempre respondia amém toda vez que Nice dizia coisas assim — porque ela queria que fosse verdade mesmo — apesar de todo sofrimento das duas — aquele otimismo da Nice até que fez bem para a Aline — ela conta que foi mudando um pouco o jeito de levar a vida — ela foi recuperando a vontade de fazer planos — a Nice insistia para que a Aline saísse mais — conhecesse pessoas — se divertisse — a Nice queria mesmo que ela arrumasse um namorado para não acabar sozinha — não era algo dito com todas as letras — mas a Aline sabia que era isso — mas começar um relacionamento era algo que estava completamente fora dos planos da Aline — ela simplesmente não pensava nisso — mas de tanto a mãe dela falar — aquela ideia foi ficando na cabeça dela e tinha dias que ela até pensava que poderia sim conhecer alguém — enfim — cabeça vazia oficina do diabo vocês sabem como é — um dia a Aline decidiu baixar um aplicativo de relacionamento só pra ver como era — sempre tem essa história né — a pessoa que baixa só pra dar uma olhada e quando vê já tá dando match com desconhecido — foi isso que aconteceu com a Aline — foi assim que ela conheceu o Lucas
o Lucas foi a primeira pessoa com quem a Aline deu match — eles começaram a conversar — saíram algumas vezes — e logo virou um namoro — e foi assim mesmo — sem nada de especial — a Aline conta que não teve nada de excepcional no começo do relacionamento deles — não foi algo que começa como uma grande história de amor — não era nem uma história mediana — ele parecia ser gente boa — simpático — não era nenhum galã mas também não era feio — ele tava na média — e a Aline se interessou por porque ele entendia muito sobre investimentos — mercado de ações — essas coisas pelas quais ela também se interessava — ele era um rapaz preocupado com o futuro e a Aline gostava disso também — além disso a Nice adorou o Lucas logo de cara — ele sempre se oferecia para ajudar as duas com a casa — foi com o apoio dele que a Aline voltou a economizar dinheiro — ela ainda sonhava em fazer aquela viagem — um dia ela resolveu contar sobre esse sonho para o Lucas — ela teve medo que ele achasse aquilo ridículo — mas ele se tornou o maior incentivador dela — ele deu a ideia de fazerem aquela viagem juntos um dia — aquilo fez a Aline se sentir animada com a vida de novo
mas o Lucas era também um namorado ciumento — a Aline suportava e relevava várias atitudes e comportamentos dele porque achava que todo casal tinha seus problemas — mas com o tempo as coisas foram ficando mais difíceis de ignorar — ela passou a se perguntar se certas coisas eram mesmo coisas de todo casal — ele criticava o tamanho das roupas dela — questionava quem ela seguia nas redes sociais — com quem ela conversava — às vezes o ciúme ficava só na reclamação — mas tinha vezes que ia além disso — em algumas discussões que eles tinham o Lucas levantava a voz — era grosso com ela — foi assim por uns meses — até que o Lucas foi ficando mais agressivo nas discussões — ele gritava — ficava irritado — quebrava coisas e depois botava a culpa nela — sabe o macho que dá soquinho na parede quando fica contrariado — era isso — até que numa discussão dessas ele apertou o braço da Aline de um jeito que assustou ela — ninguém nunca tinha encostado na Aline — ela nunca tinha apanhado nem dos pais dela — aquilo não chegou a machucar nem nada — mas nem precisava né — só aquele gesto já abalou ela — imediatamente o Lucas se desculpou — disse que tinha sido sem querer — que fez sem pensar — que não ia mais acontecer — coisas que a gente sabe que eles falam — mas aquilo se repetiu mais vezes — em todas as vezes era algo que abalava profundamente a Aline — de não conseguir reagir de tão em choque que ela ficava — ela conta que o Lucas se transformava de um jeito que botava medo nela — de não saber o que podia acontecer — e ele sempre chorava depois — pedia perdão — prometia que não ia mais acontecer — e ela sempre cedia — depois ela se sentia mal — ficava pensando por que não conseguia dar um basta naquilo — algumas vezes pensava até se não tinha sido culpa dela — enfim — o ciclo da violência que a gente já conhece — que estamos cansadas de ouvir nas histórias que chegam — nesse período a Aline ficou péssima — ela voltou a sentir aquela tristeza de novo — aqueles sentimentos de antes — de se sentir pequena — descartável — insignificante
um dia eles tiveram uma briga que a Aline nem se lembra direito como começou — mas também não importa — devia ter sido qualquer coisa estúpida — como tinha sido em todas
as vezes — nesse episódio — o Lucas apertou o braço dela de novo — mas dessa vez — além do braço — ele puxou o cabelo dela — e deixou marcas na Aline — aquilo foi a gota d’água ela decidiu que queria terminar — como sempre — o Lucas implorou — falou que a amava — que não ia viver sem ela — mas a Aline tinha decidido que não ia voltar atrás
uma semana depois — a Aline chegou em casa e encontrou o Lucas conversando com a mãe dela — ele tinha ido até lá pra pedir a Aline em casamento — tinha comprado alianças e tudo — dá pra acreditar — a Aline não acreditou mas era verdade — o Lucas não aceitava a decisão dela — mais uma vez ele chorou — prometeu que ia mudar — contou de vários planos que tinha pra vida deles — eles iam ter casa própria — disse que ia ajudar a mãe dela — e não era só isso — ele tinha preparado uma surpresa — o Lucas havia comprado uma viagem de avião para o pantanal de presente de lua de mel para ele e pra Aline — naquela cena toda a pessoa mais animada com aquelas promessas era a Nice — o Lucas já tinha contado tudo aquilo pra ela antes da Aline chegar — ela tentava disfarçar mas a Aline percebia o quanto a Nice queria que ela desse uma chance pra ele — fazia muito tempo que a Aline não via a mãe animada daquele jeito — no fim das contas — a Aline aceitou voltar com o Lucas — ela lembra como se fosse hoje — a Nice feliz como se tivesse recebido um presente — a Aline achou que talvez fosse o certo a fazer — o Lucas era de uma família com mais condições — ela não precisaria ter mais algumas preocupações — e que talvez as coisas melhorassem com um casamento
o Lucas quis marcar a data o quanto antes — ele cuidou de tudo — agendou o cartório — convidou as pessoas — organizou a recepção — ele era muito bom nisso — em menos de dois meses eles estavam se casando — e depois de uma semana iam viajar pro pantanal — a Aline só pensava nisso — finalmente ela ia realizar aquele sonho — não do jeito que ela tinha imaginado — mas ela evitava pensar nesse detalhe — ela só pensava na viagem — e na mãe — durante a cerimônia ela sentia o coração acelerar — e um aperto no peito — então ela respirava fundo e se imaginava entrando no avião
dois dias antes da viagem de lua de mel a Aline foi surpreendida com uma ligação — era a patroa da mãe dela avisando que a Nice tinha passado mal no trabalho — ela teve um mal súbito enquanto limpava uma janela da casa e caiu — disse que quando o resgate chegou já não tinha o que fazer — até hoje a Aline tem dificuldade para descrever o que ela sentiu naquele momento — um borrão — falta de ar — aperto no peito — vontade de desaparecer — uma mistura de sentimentos — tristeza — medo — raiva — e uma injustiça gigante — naquela hora ela não perdia só a mãe — mas a família toda — definitivamente agora — ela sentia injustiça por ter sido a única que ficou — logo ela
a parte difícil de contar essa história durante todo esse tempo foi justamente processar esses momentos terríveis pra conseguir falar deles — até hoje são muito duros de reviver — a Aline já tentou escrever sobre isso várias vezes — mas nunca conseguiu traduzir aquele sentimentos — aquelas sensações exatamente como ela sentia — no e-mail que enviou — a Aline conta que achou que escrevendo aqui pro episódio conseguiria se expressar de um jeito menos dolorido — mais preciso — mas descobriu que ainda não sabe como — ela espera que vocês entendam
a Aline nunca soube exatamente o que aconteceu com a mãe dela — ninguém — nem as pessoas que trabalhavam com a Nice — nem os patrões — sabiam dizer direito o que tinha acontecido — se naquele dia a Nice tinha reclamado de algum mal estar — como ela estava se sentindo quando passou mal — quanto tempo demoraram pra chamar o socorro — a Aline até pensou se aquilo poderia virar um processo — se poderia conseguir alguma indenização — os patrões da Nice se ofereceram para arcar com todos os gastos — do velório ao sepultamento — eles quiseram até pagar um túmulo caro — mas a Aline preferiu enterrar a mãe perto do pai e do irmão — a única coisa que ela queria era ter a família próxima — da maneira que fosse possível — de resto ela não queria mais nada
se você acompanhou até aqui — deve estar se perguntando sobre a lua de mel — para a Aline era óbvio que aquela viagem não tinha mais como acontecer — mas para o Lucas era o contrário — ele queria porque queria fazer a viagem — remarcar as passagens e hotel na véspera ficaria muito caro — e ele não queria perder aquele dinheiro de jeito nenhum — o Lucas tentou convencer a Aline a todo custo — ele disse que faria bem pra ela viajar — afinal era o sonho dela — que aquilo ajudaria a superar o luto — que era algo que a Nice gostaria que ela fizesse — mas quando ele viu que a Aline não ia mudar de ideia o discurso dele mudou — ele disse que as coisas não iam dar certo começando daquele jeito — que se o casamento fracassasse seria culpa da Aline — porque ela não o amava o bastante e que aquilo o magoava muito — tadinho — ele ficou muito abalado — logo ele — tão abalado que decidiu fazer a viagem sem a Aline — porque ele precisava de um tempo pra colocar as ideias no lugar e achou que seria bom se afastarem um pouco — e ele foi — a Aline ficou sozinha um dia depois de ter enterrado a mãe
o avião em que o Lucas estava teve uma pane durante o voo — um dos motores parou de
funcionar e o avião caiu — quando viu a notícia na televisão a Aline soube de cara que era o avião do Lucas — era o voo que ela devia ter pegado — o avião caiu numa mata fechada — de difícil acesso — todos os ocupantes morreram — os familiares das vítimas se uniram para processar a empresa aérea — meses depois — todas as famílias receberam uma indenização — inclusive a Aline — viúva de um dos passageiros
de uma hora pra outra a Aline passou a ter muito dinheiro — pra ela era muito — mais do que qualquer dinheiro que ela já tinha pensando em receber na vida — numa hora ela não tinha nada — na outra podia mudar totalmente sua vida — era o bastante para poder realizar alguns sonhos antigos — e também novos — de novo a Aline se via num momento de espanto — de muitas coisas passando na cabeça ao mesmo tempo — mais uma vez ela sentia a vida de cabeça pra baixo — mas dessa vez era diferente — a tristeza ainda estava lá — mas agora ela não precisava mais pensar nas contas da semana que vem — nas dívidas de um ano atrás — na fatura do próximo mês — ainda havia muitos problemas — mas dinheiro não era mais um deles — e isso fazia ela sentir — alívio
a Aline conta que nos anos que se passaram desde então ela conseguiu realizar muitas coisas — ela se mudou — saiu do emprego ruim — fez uma faculdade — comprou uma casa grande e confortável — como a casa que ela sonhava para a família dela — hoje ela gosta de acordar cedo — ficar na varanda de casa pra tomar café da manhã e apreciar a vista bonita que tem onde ela mora — ela também aprendeu muitas coisas novas — fez cursos — tirou ideias do papel — voltou a estudar — ela conseguiu realizar o desejo de desenvolver projetos próprios e falar para muitas pessoas — e sim — ela viajou de avião — uma única vez — quando descobriu que voar não era uma coisa muito agradável — ela ainda quer viajar e conhecer outros lugares — mas vai ter que superar o medo antes — em compensação — ela descobriu que gostava de muitas outras coisas — coisas bonitas e coisas simples — desenhar por exemplo — a Aline está fazendo aulas de desenho e pintura — e o sonho dela é pintar quadros um dia — os traços dela ainda não são tão bons — mas ela está melhorando — pra quem achou que nunca seria capaz de fazer um desenho — até que ela está mandando bem — é só uma questão de prática — e de tempo — isso é uma das coisas que a Aline aprendeu — que com o tempo tudo se transforma — de algum jeito — mesmo que algumas coisas nunca mudem
como vocês acabaram de ouvir — hoje é tudo muito diferente de como era a vida da Aline antes — durante muito tempo ela achou que sua vida era um desperdício — mas como eu contei no início — hoje a Aline sabe que tem uma vida boa — mas isso não apaga ou diminui tudo que aconteceu antes — claro que não — apesar de ter tudo que sempre sonhou ao alcance agora — ela ainda pensa bastante no que ela não tem — a Aline pensa na sua família todos os dias — o tempo todo — principalmente quando ela vai fazer alguma coisa que gosta — ou durante algum momento importante — ela sempre lamenta não ter com ela as pessoas que ela mais amou na vida — essa é uma cicatriz que nunca vai sumir — mas que pode se transformar de algum jeito — a tristeza ainda está lá — mas a Aline admite que a vida confortável que ela tem hoje ajuda a aliviar um pouco — agora essa tristeza que um dia pareceu absoluta — divide espaço com momentos de felicidade — e mesmo tendo podido alcançar tantos sonhos seja motivo de sofrimento às vezes — mesmo que ela sinta não merecer certos privilégios que ela reconhece que tem hoje — a Aline espera que com o tempo ela também consiga sentir isso de um jeito diferente — porque nada é uma coisa só infinitamente — antes ela achava que contar a própria história era uma perda de tempo — e hoje ela tá aqui — contando a própria vida para um monte de gente escutar — pessoas que ela nem conhece
outra coisa que a Aline ama fazer é escrever — a escrita era algo que ela sempre teve vontade de se dedicar — escrevendo ela consegue imaginar a vida sendo diferente — de outros jeitos — isso ajuda nesse processo de transformar o passado — ela achou que se um dia as coisas mudassem — não precisaria mais imaginar sua vida como se fosse outra — mas ela ainda faz isso — principalmente quando escreve — atualmente ela está escrevendo uma história que ela ainda não sabe o que vai ser — é a história de uma mulher — mas também sobre mudanças que acontecem na vida — um pouco inspirada em coisas que a própria Aline viveu — mas ela teve que interromper por causa de um bloqueio criativo — às vezes isso acontece e nesses momentos ela precisa encontrar outra coisa pra contar — diferente de antes — hoje a Aline se interessa por contar todas as coisas — as coisas boas e as coisas ruins — as coisas grandes e as pequenas — coisas de boa e má sorte — as coisas felizes — as coisas tristes — as coisas inventadas
essa foi a minha história de hoje — se você — assim como a Aline — também tem uma história e quer contar ela aqui — é só enviar um e-mail — também pode escrever contando o que achou do episódio — com algum comentário — sugestão — observação — a Aline vai gostar de receber